De uma maneira que podia mas em nada faz lembrar os bons costumes, enviaste-me uma carta em branco assinada a desprezo. Não tinha remetente, de nada me valia responder-te em branco de igual modo e assinar a compasso, porque não irias sequer recebê-la.
É doloroso ter páginas e páginas sem fim sem nada para ler
mergulha-se num estado hipnótico neste branco de espuma do mar, que parece de raiva.
Então deixo-me levar pela tentação de um lápis acabado de afiar e escrevo tudo aquilo que queria ler. Escrevo até a exaustão da realidade quando me apercebo que por mais que escreva, está na mesma tudo em branco
carrego com mais força, até partir o espinho frágil de carvão
Escreve-se na solidão memórias de momentos de companhia, de nada me serve tudo isto
a memória foi curta. Culpa da mente infantil que teima em criar e fantasiar, e breves instantes tornam-se então repletos, eufóricos, quase parecem não caber no seu próprio tempo
E não cabem
e não passam de contos que gostávamos que fossem mas não são.
Revoltam-se as entranhas e encontra-se a última réstia de coragem ou falta de bom senso
a surpresa acontece quando provavelmente já não devia, permitindo que se instale uma confusão tremenda em cada poro do corpo
logo agora que as promessas já estão feitas
(mas não estavam prontas a serem cumpridas).
Assusto-me com a facilidade com que tudo se quebra
somos uma fina camada de gelo que pica passo a passo outra camada de gelo ainda mais ténue. Resta-nos esperar que mais uma vez o tempo cure tudo, e dessa forma volte o Inverno para podermos gelar e recomeçar, cada vez mais frios e mais finos.
Sou eu a bailarina pendurada do céu por fio de coco como uma marioneta, que dança articulada como quem voa numa pista sem princípio nem fim
danço explorando todos os ângulos, todos os movimentos, todos os sentidos, com e sem frenesim, suave ou obtusa.
Tento num esforço interminável que todo o meu calor sirva para derreter este gelo
mas não está ao meu alcance. Por vezes caio redonda no chão, desajeitada, mas levanto-me quase sempre
o embaraço já ficou algures perdido no tempo e a face nunca ficou rosada.
Podia debater com ódio esta sentença gelada de ter de dançar sozinha neste lugar de fantasia, mas não. Aprendi a gostar deste espaço
é branco, é frio, não se adivinha o seu início nem o seu fim, é largo, extenso, é intemporal
é só meu.
(Imagem de Sascha Huettennhain)